sexta-feira, 29 de junho de 2012

A animação cultural na escrita de Fernando Namora

«CULTURA E ANIMAÇÃO CULTURAL

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Que é, pois, verdadeiramente cultura, cuja noção importa definir e incutir, para que as pessoas a sintam onde quer que residam, onde quer que sonhem e lidem, onde quer que lutem, seja aonde for que se exprimam como células vivas do tecido social? A definição não é fácil precisamente porque terá de incluir tudo o que diferencia a existência como simples função económica-fisiológica da existência como acto participante e criador – um canto profundo que irrompe de cada um de nós, indivíduos, e de uma sociedade enquanto organismo solidarizado no intercâmbio desses impulsos singulares.

A cultura será, por conseguinte, uma certa maneira de nos situarmos no mundo, interrogando-o, interpretando-o e refazendo-o, de nos dispormos no xadrez gregário, uma certa maneira de conceber o trabalho, os lazeres e a fruição de tudo isso, uma certa maneira de apreender a novidade e de a legar, já transfusionada, aos que receberão de nós um universo inevitavelmente modificado.

Nada, pois, menos passivo que cultura. Todo o fenómeno cultural pressupõe alvoroço e adesão fecundamente às coisas e aos seres – deles e delas recolhendo as linfas que, após subtis alquimias, irrigam o que de mais vital existe na trama colectiva. Nada menos passivo e nada menos aristocrático. Sabe-se, aliás, que é nas épocas de crise, quando o homem joga astuciosamente com a sua esterilidade e o seu desespero, que se propõe uma cultura amaneirada, de difícil acesso, que, como todo o cerimonial ofuscador, não tem verdade nem tem fé.

O camponês que inventa uma dança ou uma cantiga referentes ao seu mundo de anseios e labores, o pastor que, nas horas solitárias, esculpe bichos, objectos ou figurantes do seu agro, o aldeão que representa um auto tradicional e lhe acrescenta a sua perspectiva das paixões, o citadino que pratica desporto num estádio, a criança que traduz, num desenho, uma cena familiar – todos eles fazem cultura, e fazem-na, sobretudo, se cada um desses actos for diverso dos que, no tempo e no espaço, de algum modo se lhes assemelharam.

Porque é justamente na diversidade, e não na obediência a um figurino, que os valores culturais o são como tal e oferecem ao homem a chave da adaptação, o mesmo que dizer: da sobrevivência. Políticos, sociólogos, economistas, são agora unânimes em acusar de paralisadora a uniformidade para que tendíamos, reduzida a orbe, pela informação globalizada, às dimensões de uma vitória, em que os acontecimentos e a instantânea reacção por eles provocada eram impostos aos homens de qualquer lugar e de qualquer contexto. O apelo, agora, mostra timbre bem distinto: é dirigido ao que existe de específico em cada povo, em cada agregado, em cada indivíduo, repositório decantado de experiências acumuladas, que a prática a todo o momento reformula, pois essa especificidade revela-se muito mais capaz de agir positivamente sobre o mundo, de integrar as verdades novas, de rectificar as desigualdades, do que a artificial padronização de um estilo de vida.

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A animação cultural, portanto, nesta fase de rudimentarismo das populações, deveria ter em vista fundamentalmente a sensibilização dos espíritos aos seus próprios valores. Ensinar as pessoas a servirem-se dos seus sentidos, a entenderem, a interferirem, a reconhecerem, afinal, o significado e a relevância dos actos que as testemunham. Como escreveu Michel Guy: "dar ao público os meios de se identificar." O convívio com obras de arte, a romagem a monumentos e museus, a organização de exposições, palestras, festivais. de pouco valem, ou o seu vinco será efémero, se as pessoas se sentirem de "fora", se não tiverem sido gradual e insistentemente preparadas para um desfrute genuíno. Daí que a cultura, para ser assumida e dinamizada, precise dos veículos mais diversos. E não dispense nenhum dos domínios da actividade humana, a escola, a oficina, o recreio. Em todos eles deverá erguer-se uma antena que capte e transmita esse estremecimento pujante que vibra num povo inteiro quando tem alguma coisa a escutar e a dizer-nos.

Educar, revelar, adestrar o gosto. Mas, primeiro que tudo, incitando as iniciativas espontâneas dos interessados. De contrário, desenharemos abstracções num papel impávido, edificaremos templos mortos, como parece ter sucedido à amioria das Casas de Cultura com que muitos países, ditos civilizados, julgaram satisfazer as necessidades culturais  dos cidadãos.»

In a nave de pedra cadernos de um escritor

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